A fascinação da reportagem
Gay Talese, um dos fundadores do New Journalism (novo jornalismo), uma maneira de descrever a realidade com o cuidado, o talento e a beleza literária de quem escreve um romance, é um crítico do jornalismo sem alma e sem graça. Seu desapontamento com a qualidade de certa mídia pode parecer radical e ultrapassado. Mas não é. Na verdade, Talese é um enamorado do jornalismo de qualidade. E a boa informação, independentemente da plataforma, reclama competência, rigor e paixão.
Segundo Talese, a crise do jornalismo está intimamente relacionada com o declínio da reportagem clássica. “Acho que o jornalismo, e não o ‘Times’, está sendo ameaçado pela internet”, disse Talese. “E o principal motivo é que a internet faz o trabalho de um jornalista parecer fácil. Quando você liga o laptop na sua cozinha, ou em qualquer lugar, tem a sensação de que está conectado com o mundo. Em Pequim, Barcelona ou Nova York…Todos estão olhando para uma tela de alguns centímetros. Pensam que são jornalistas, mas estão ali sentados, e não na rua. O mundo deles está dentro de uma sala, a cabeça está numa pequena tela, e esse é o seu universo.
Quando querem saber algo, perguntam ao Google. Estão comprometidos apenas com as perguntas que fazem. Não se chocam acidentalmente com nada que estimule a pensar ou a imaginar. Às vezes, em nossa profissão, você não precisa fazer perguntas. Basta ir às ruas e olhar as pessoas. É aí que você descobre a vida como ela realmente é vivida”, observa Talese.
Os jornais, equivocadamente, pensam que são meio de comunicação de massa. E não o são. Daí derivam erros fatais: a inútil imitação da televisão, a incapacidade de dialogar com a geração dos blogs e dos videogames e o alinhamento acrítico com os modismos politicamente corretos.
Esqueceram que os diários de sucesso são aqueles que sabem que o seu público, independentemente da faixa etária, é constituído por uma elite numerosa, mas cada vez mais órfã de produtos de qualidade. O leitor que precisamos conquistar não quer o que pode conseguir na internet. Ele quer qualidade informativa: o texto elegante, a matéria aprofundada, a análise que o ajude, efetivamente, a tomar decisões.
A fórmula de Talese demanda forte qualificação profissional: “A minha concepção de jornalismo sempre foi a mesma. É descobrir as histórias que valem a pena ser contadas. O que é fora dos padrões e, portanto, desconhecido. E apresentar essa história de uma forma que nenhum blogueiro faz. A notícia tem de ser escrita como ficção, algo para ser lido com prazer. Jornalistas têm de escrever tão bem quanto romancistas”. Eis um magnífico roteiro e um baita desafio para a conquista de novos leitores: garra, elegância, rigor, relevância.
A revalorização da reportagem e o revigoramento do jornalismo analítico devem estar entre as prioridades estratégicas. É preciso encantar o leitor com matérias que rompam com a monotonia do jornalismo declaratório. Menos Brasil oficial e mais vida. Menos aspas e mais apuração. Menos frivolidade e mais consistência.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 04/01/2016
Cicatrizes da cidade
As pautas não estão dentro das redações. Elas gritam em cada esquina. É só pôr o pé na rua e a reportagem salta na nossa frente. Essa percepção, infelizmente, é a que mais falta aos jornais. Os diários perderam o cheiro do asfalto, o fascínio da vida, o drama do cotidiano. Têm o gosto insosso de hambúrguer em série. O crescimento dos jornais depende de uma providência muito simples: sair às ruas, fazer reportagem. Só isso.
Estive, recentemente, no centro antigo de São Paulo. Um concerto em homenagem à Justiça, no encerramento do mandato do desembargador José Renato Nalini na presidência do Tribunal de Justiça, levou-me ao Theatro Municipal. Um belo espetáculo. Deparei-me na saída, às 22 horas, com uma cidade assustadora: edifícios pichados, prédios invadidos (o edifício do antigo cinema Marrocos é um favelão), gente sofrida e abandonada, prostituição a céu aberto, zumbis afundados no crack, uma cidade sem alma e desfigurada pelas cicatrizes da ausência criminosa do poder público.
A cidade de São Paulo foi demitida por seus governantes. E nós, jornalistas, precisamos mostrar a realidade. Não podemos ficar reféns das assessorias de comunicação e das maquiagens que falam de uma revitalização que só existe no papel. Temos o dever de pôr do dedo na chaga. Fazer reportagem. Escancarar as contradições entre o discurso empolado e a realidade cruel. Basta percorrer três quarteirões. As pautas estão quicando na nossa frente.
Jornalismo é isso: mostrar a vida, com suas luzes e suas sombras. São Paulo, a cidade mais rica do País e um dos maiores orçamentos públicos, é um retrato de corpo inteiro da falência do Estado.
Nós, jornalistas, temos um papel importante. Devemos dar a notícia com toda a clareza. Precisamos fugir do jornalismo declaratório. Nossa missão é confrontar a declaração do governante com a realidade dos fatos. Não se pode permitir que as assessorias de comunicação dos políticos definam o que deve ou não ser coberto. O jornalismo de registro, pobre e simplificador, repercute o Brasil oficial, mas oculta a verdadeira dimensão do País real. Precisamos fugir do espetáculo e fazer a opção pela informação. Só assim, com equilíbrio e didatismo, conseguiremos separar a notícia do lixo declaratório.
As cicatrizes que desfiguram o rosto de São Paulo e do Brasil podem ser superadas. Dinheiro existe, e muito. Falta vergonha na cara, competência e um mínimo de espírito público. Façamos reportagem. Informação é arma da cidadania. E votemos bem. Seu voto, amigo leitor, pode virar o jogo.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 22/12/2015
A ‘mcdonaldização’ da imprensa
Os pessimistas me aborrecem. Fazem, como dizia Oduvaldo Vianna Filho, “do medo de viver um espetáculo de coragem”. Vivem de mal com a vida. Estão sempre em posição de combate. Não olham para a frente. São homens e mulheres de retrovisor. À semelhança do Quixote, vivem lutando contra moinhos de vento. Falta-lhes equilíbrio, serenidade e bom senso.
O que é côncavo de um lado aparece convexo do outro. Depende só do nosso ângulo de visão. Como lembrou alguém, muitas vezes um defeito é apenas a sombra projetada por uma virtude. Os pessimistas padecem da síndrome das sombras. São incapazes de ver o outro lado: o da virtude.
Algumas críticas ideológicas ao jornalismo, amargas e corrosivas, têm a garra do pessimismo amargo e do sectarismo ressentido. Irritam-se, alguns, com o vigor do jornalismo de denúncia e vislumbram interesses espúrios ou engajamentos partidários. Uma retrospectiva honesta, contudo, evidencia que os jornais nunca tiveram uma relação amorosa com governos, independentemente do colorido ideológico dos poderosos de turno. E é assim que deve ser. As relações entre jornalismo e poder devem ser pautadas por certa tensão. O estranhamento civilizado é bom para a sociedade e essencial para a democracia.
Outros, ingenuamente, criticam a compreensível preocupação dos jornais com a saúde do negócio. Esquecem que sem recursos a independência, base da credibilidade, simplesmente não existe. A saúde dos jornais é importante para uma sociedade livre. Ganhar dinheiro com informação não é um delito. É um dever ético. O lucro legítimo decorre da credibilidade, da qualidade do produto. E a qualidade é o outro nome da ética.
A ética informativa não é um dique, mas um canal de irrigação. A paixão pela verdade, o respeito à dignidade humana, a luta contra a corrupção, a defesa dos valores, enfim, representam uma atitude eminentemente afirmativa.
A ética, ao contrário do que gostariam os defensores de um moralismo piegas, não é um freio às justas aspirações de crescimento das empresas. Suas balizas, corretamente entendidas, são a mola propulsora das verdadeiras mudanças.
O jornalismo de escândalo, ancorado num provincianismo aético, é cada vez menos frequente. Recaídas ocasionais são objeto de críticas e discussões internas.
O jornalismo brasileiro, não obstante suas deficiências, tem desempenhado papel relevante. Ao lancetar os tumores da corrupção, por exemplo, cumpre um dever ético intransferível. A mídia, num país dominado por esquemas cartoriais e assustadora delinquência pública, assume significativa parcela de responsabilidade. O Brasil, graças à varredura dos jornais, está mudando. Para melhor. A cultura da impunidade, responsável pela rotina do acobertamento e dos panos quentes, está, aos poucos, sendo substituída pelo exercício da cidadania responsável.
Os pessimistas, no entanto, querem que as coisas mudem pela ação dos outros. Esquecem que a democracia não é compatível com a omissão rançosa. As críticas à imprensa, necessárias e pertinentes, são sempre bem-vindas. Espera-se, no entanto, que sejam construtivas e equilibradas.
Ouvi, recentemente, uma dessas críticas certeiras num seminário de mídia. Os jornais, dizia meu interlocutor, estão cada vez mais parecidos e sem graça. Concordo, embora parcialmente.
A “mcdonaldização” dos jornais é um risco que convém evitar. A crescente exploração do entretenimento e da superficialidade informativa em prejuízo da informação de qualidade tem frustrado inúmeros consumidores de jornais. O público-alvo dos jornais não se satisfaz com o hambúrguer jornalístico. Trata-se de uma fatia qualificada do mercado. Quer informação aprofundada, analítica, precisa e confiável.
É preciso investir na leveza formal e no fascinante mundo digital. Sem dúvida. O investimento em didatismo, clareza, pautas próprias e agenda positiva são, entre outras, algumas das alavancas do crescimento. Mas nada disso, nada mesmo, supera a qualidade do conteúdo. É aí que se trava a verdadeira batalha. Só um produto consistente tem a marca da permanência. O jornal The New York Times sabe disso como nenhum outro: “Produzir jornalismo de qualidade e matérias sérias de maneira mais atraente”. Qualidade e bom humor. É isso.
Outro detalhe: os jornalistas precisam escrever para os leitores. É preciso superar a mentalidade de gueto, que transforma o jornalismo num exercício de arrogância. Cadernos culturais e econômicos, frequentemente, dialogam consigo mesmos. O leitor é considerado um estorvo ou um chato. É preciso escrever com simplicidade e explicar os fatos.
O jornal precisa moldar o seu conceito de informação, ajustando-o às necessidades do público a que se dirige. Outro detalhe importante, sobretudo em épocas de envelhecimento demográfico: a tipologia empregada pelos jornais tem de levar em conta os problemas visuais dos seus consumidores. Falando claramente: os jornais precisam trabalhar com letras grandes.
Apostar em boas pautas (não muitas, mas relevantes) é outra saída. É melhor cobrir magnificamente alguns temas do que atirar em todas as direções. O leitor pede, em todas as pesquisas, reportagem. Quando jornalistas, entrincheirados e hipnotizados pelas telas dos computadores, não saem à luta, as redações se convertem em centros de informação pasteurizada. O lugar do repórter é a rua, garimpando a informação, prestando serviço ao leitor e contando boas histórias. Elas existem. Estão em cada esquina das nossas cidades. É só procurar.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 9/11/2015
Jornalismo fascina e vende
As virtudes e as fraquezas dos jornais não são recatadas. Registram-nas fielmente os sensíveis radares dos leitores. Precisamos, por isso, derrubar inúmeros desvios que conspiram contra a credibilidade dos jornais.
Um deles, talvez o mais resistente, é o dogma da objetividade absoluta. Transmite, num solene tom de verdade, a falsa certeza da neutralidade jornalística. Só que essa separação radical entre fatos e interpretações simplesmente não existe. É uma bobagem.
Jornalismo não é ciência exata e jornalistas não são robôs. Além disso, não se faz bom jornalismo sem emoção. A frieza é anti-humana e, portanto, antijornalística. A neutralidade é uma mentira, mas a isenção é uma meta a ser perseguida. Todos os dias. A imprensa honesta e desengajada tem um compromisso com a verdade. E é isso que conta.
Mas a busca da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, a falta de rigor e o excesso de declarações entre aspas.
O jornalista engajado é sempre um mau repórter. Militância e jornalismo não combinam. Trata-se de uma mescla, talvez compreensível e legítima nos anos sombrios da ditadura, mas que, agora, tem a marca do atraso e o vestígio do sectarismo. O militante não sabe que o importante é saber escutar. Esquece, ofuscado pela arrogância ideológica ou pela névoa do partidarismo, que as respostas são sempre mais importantes que as perguntas.
A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos. O bom repórter é um curioso essencial, um profissional que é pago para se surpreender. Pode haver algo mais fascinante? O jornalista ético esquadrinha a realidade, o profissional preconceituoso constrói a história.
A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade da informação. A manchete de impacto, oposta ao fato ou fora do contexto da matéria, transmite ao leitor a sensação de uma fraude.
Mesmo assim, os jornais têm prestado um magnífico serviço no combate à corrupção. Alguém imagina que a cascata de denúncias e prisões teria ocorrido sem uma imprensa independente? Jornais de credibilidade oxigenam a democracia.
Uma imprensa ética sabe reconhecer seus erros. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, desinformar. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade.
O jornalismo tropeça em armadilhas. Nossa profissão enfrenta desafios, dificuldades e riscos sem fim. E é aí que mora o fascínio. . Registram-nas fielmente os sensíveis radares dos leitores. Precisamos, por isso, derrubar inúmeros desvios que conspiram contra a credibilidade dos jornais.
Um deles, talvez o mais resistente, é o dogma da objetividade absoluta. Transmite, num solene tom de verdade, a falsa certeza da neutralidade jornalística. Só que essa separação radical entre fatos e interpretações simplesmente não existe. É uma bobagem.
Jornalismo não é ciência exata e jornalistas não são robôs. Além disso, não se faz bom jornalismo sem emoção. A frieza é anti-humana e, portanto, antijornalística. A neutralidade é uma mentira, mas a isenção é uma meta a ser perseguida. Todos os dias. A imprensa honesta e desengajada tem um compromisso com a verdade. E é isso que conta.
Mas a busca da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, a falta de rigor e o excesso de declarações entre aspas.
O jornalista engajado é sempre um mau repórter. Militância e jornalismo não combinam. Trata-se de uma mescla, talvez compreensível e legítima nos anos sombrios da ditadura, mas que, agora, tem a marca do atraso e o vestígio do sectarismo. O militante não sabe que o importante é saber escutar. Esquece, ofuscado pela arrogância ideológica ou pela névoa do partidarismo, que as respostas são sempre mais importantes que as perguntas.
A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos. O bom repórter é um curioso essencial, um profissional que é pago para se surpreender. Pode haver algo mais fascinante? O jornalista ético esquadrinha a realidade, o profissional preconceituoso constrói a história.
A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade da informação. A manchete de impacto, oposta ao fato ou fora do contexto da matéria, transmite ao leitor a sensação de uma fraude.
Mesmo assim, os jornais têm prestado um magnífico serviço no combate à corrupção. Alguém imagina que a cascata de denúncias e prisões teria ocorrido sem uma imprensa independente? Jornais de credibilidade oxigenam a democracia.
Uma imprensa ética sabe reconhecer seus erros. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, desinformar. Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade.
O jornalismo tropeça em armadilhas. Nossa profissão enfrenta desafios, dificuldades e riscos sem fim. E é aí que mora o fascínio.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 12/10/2015.
Jornalismo e violência
Impressiona-me o crescente espaço destinado à violência nos meios de comunicação. Catástrofes, tragédias, crimes e agressões, recorrentes como chuvaradas de verão, compõem uma pauta sombria e perturbadora. A violência não é uma invenção da mídia. Mas sua espetacularização é um efeito colateral que deve ser evitado.
Não se trata de sonegar informação. Mas é preciso contextualizá-la. A overdose de violência na mídia pode provocar fatalismo e uma perigosa resignação. Não há o que fazer, imaginam inúmeros leitores, ouvintes, telespectadores e internautas. Acabamos, todos, paralisados sob o impacto de uma violência que se afirma como algo irrefreável e invencível. E não é verdade. Podemos todos, jornalistas, formadores de opinião, estudantes, cidadãos, enfim, dar pequenos passos rumo à cidadania e à paz.
Os que estamos do lado de cá, os jornalistas, carregamos nossas idiossincrasias. Sobressai, entre elas, certa tendência ao catastrofismo. O rabo abana o cachorro. O mote, frequentemente usado para justificar o alarmismo de certas matérias, denota, no fundo, a nossa incapacidade para informar em tempos de normalidade.
Mas mesmo em épocas de crise (e estamos vivendo uma gravíssima crise de segurança pública), é preciso não aumentar desnecessariamente a temperatura. O jornalismo de qualidade reclama um especial cuidado no uso dos adjetivos. Caso contrário, a crise real pode ser amplificada pelos megafones do sensacionalismo. À gravidade da situação, inegável e evidente, acrescenta-se uma dose de espetáculo e uma indisfarçada busca de audiência. O resultado final é a potencialização da crise.
Alguns setores da imprensa têm feito, de fato, uma opção preferencial pelo negativismo. O problema não está no noticiário da violência, mas na miopia, na obsessão pelos aspectos sombrios da realidade. É cômodo e relativamente fácil provocar emoções.
Informar com profundidade é outra conversa. Exige trabalho, competência e talento.
O que eu quero dizer é que a complexidade da violência não se combate com espetáculo, atitudes simplórias e reducionistas, mas com ações firmes das autoridades e, sobretudo, com mudanças de comportamento. Como salientou o antropólogo Roberto DaMatta, “se a discussão da onda de criminalidade que vivemos se reduzir à burrice de um cabo de guerra entre os bons, que reduzem tudo à educação e ao ‘social’; e os maus, que enxergam a partir do mundo real, o mundo da dor e dos menores e maiores assassinos, e sabem que todo ato criminoso é também um caso de polícia, então estaremos fazendo como as aranhas do velho Machado de Assis, querendo acabar com a fraude eleitoral mudando a forma das urnas”.
O que critico não é a denúncia da violência, mas o culto ao noticiário violento em detrimento de uma análise mais séria e profunda. Precisamos, ademais, valorizar editorialmente inúmeras iniciativas que tentam construir avenidas ou ruelas de paz nas cidades sem alma. A bandeira a meio pau sinalizando a violência não pode ocultar o esforço de entidades, universidades e pessoas isoladas que, diariamente, se empenham na recuperação de valores fundamentais: o humanismo, o respeito à vida, a solidariedade. São pautas magníficas. Embriões de grandes reportagens.
Denunciar o avanço da violência e a falência do Estado no seu combate é um dever ético. Mas não é menos ético iluminar a cena de ações construtivas, frequentemente desconhecidas do grande público, que, sem alarde ou pirotecnias do marketing, colaboram, e muito, na construção da cidadania.
É fácil fazer jornalismo de boletim de ocorrência. Não é tão fácil contar histórias reais, com rosto humano, que mostram o lado bom da vida. A juventude, por exemplo, ao contrário do que fica pairando em algumas reportagens, não está tão à deriva assim. A delinquência, na verdade, está longe de representar a maioria esmagadora da população estudantil. A juventude real, perfilada em várias pesquisas e na eloquência dos fatos, está identificando valores como amizade, família, trabalho. Há uma demanda reprimida de normalidade.
Superadas as fases do fundamentalismo ideológico, marca registrada dos anos 60 e 70, e do oba-oba produzido pela liberação dos anos 80 e 90 do século passado, estamos entrando num período mais realista e consistente. A juventude batalhadora sabe que não se levanta um país na base do quebra-galho e do jogo de cintura. O futuro depende de esforços pessoais que se somam e começam a mudar pequenas coisas. É preciso fazer o que é correto, e não o que pega bem. Mudar os rumos exige, sobretudo, a coragem de assumir mudanças pessoais.
A nova tendência tem raízes profundas. Os filhos da permissividade e do jeitinho sentem intensa necessidade de consistência profissional e de âncoras éticas. O Brasil do corporativismo, da impunidade do dinheiro e da força do sobrenome vai, aos poucos, abrindo espaço para a cultura do trabalho, da competência e do talento. O auê vai sendo substituído pela transpiração e o cartório vai sendo superado pela realidade do mercado.
A juventude real, não a de proveta, imaginada por certa indústria cultural, manifesta crescente desejo de firmeza moral. Não quer a covarde concessão da velhice assanhada. Espera, sim, a palavra que orienta.
A violência está aí. E é brutal. Mas também é preciso dar o outro lado, o lado do bem. Não devemos ocultar as trevas. Mas temos o dever de mostrar as luzes que brilham no fim do túnel. A boa notícia também é informação. E, além disso, é uma resposta ética e editorial aos que pretendem fazer do jornalismo um refém da cultura da violência.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 28/9/2015
O resgate do jornalismo
Num mundo cada vez mais rápido, em que as informações se disseminam por múltiplos meios – graças ao tablet, ao celular e às mídias sociais –, o jornal tem futuro. Mas é preciso fazer a lição de casa.
Fustigado pelo protagonismo da internet, o jornalismo foi raptado pela perda de qualidade do conteúdo, pelo perigoso abandono de sua vocação pública e por sua equivocada transformação em produto mais próprio para consumo privado. Impõe-se resgatar o entusiasmo do “velho ofício”. É urgente investir fortemente na formação e qualificação dos profissionais. Sem jornalismo público, independente e qualificado o futuro da democracia é incerto e preocupante.
A sobrevivência dos meios tradicionais demanda foco absoluto na qualidade de seu conteúdo. A internet é um fenômeno de desintermediação. E que futuro aguarda os meios de comunicação, assim como os partidos políticos e os sindicatos, num mundo desintermediado? Só nos resta uma saída: produzir informação de alta qualidade técnica e ética. Ou fazemos jornalismo de verdade, fiel à verdade dos fatos, verdadeiramente fiscalizador dos poderes públicos e com excelência na prestação de serviço, ou seremos descartados por um consumidor cada vez mais fascinado pelo aparente autocontrole da informação na plataforma virtual.
Os diários, felizmente, têm conseguido preservar seu maior capital, a credibilidade.
A confiança da população na qualidade ética dos seus jornais tem sido um inestimável apoio para o desenvolvimento de um verdadeiro jornalismo de buldogues. O combate à corrupção e o enquadramento de históricos caciques da política nacional, alguns sofrendo o ostracismo do poder e outros no ocaso do seu exercício, só é possível graças à força do binômio que sustenta a democracia: imprensa livre e opinião pública informada.
A revalorização da reportagem e o revigoramento do jornalismo analítico devem estar entre as prioridades estratégicas.
É preciso atiçar o leitor com matérias que rompam a monotonia do jornalismo de registro. Menos aspas e mais apuração. O leitor quer menos show e mais informação de qualidade. O sensacionalismo, embora festejado num primeiro momento, não passa pelo crivo de uma visão retrospectiva. Curiosidade não se confunde com aprovação. O prestígio de uma publicação não é fruto do acaso. É uma conquista diária. A credibilidade não se edifica com descargas de adrenalina.
Apostar em boas pautas – não muitas, mas relevantes – é outra saída. É melhor cobrir magnificamente alguns temas do que atirar em todas as direções. O leitor pede reportagem. Quando jornalistas, entrincheirados e hipnotizados pelas telas dos computadores, não saem à luta, as redações se convertem em centros de informação pasteurizada. O lugar do repórter é na rua, garimpando a informação, prestando serviço ao leitor e contando boas histórias. Elas existem. Estão em cada esquina das nossas cidades. É só procurar.
“Hoje”, dizia Nelson Rodrigues, “ninguém imagina o que eram as velhas gerações românticas da imprensa. Mudaram o jornal e o leitor. No ano passado, houve uma chuva inédita, uma chuva bíblica, flagelando a cidade. Desde Estácio de Sá, não víamos nada parecido. E todo mundo morreu e desabou, e se afogou, menos o repórter. Não houve uma única baixa na reportagem. Fez-se toda a cobertura do dilúvio e ninguém ficou resfriado, ninguém espirrou, ninguém apanhou uma reles coriza. Por aí se vê que há, entre a nossa imprensa moderna e o fato, uma distância fatal. O repórter age e reage como um marginal do acontecimento. Antigamente, não. Antigamente, o profissional sofria o fato na carne e na alma.”
Jornalismo sem alma e sem rigor. É o diagnóstico de uma doença que contamina inúmeras redações. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens não têm cheiro do asfalto. É preciso reinventar o jornalismo e recuperar, num contexto muito mais transparente e interativo, as competências e a magia do jornalismo de sempre. Quem tem menos de 30 anos gosta de sensações, mensagens instantâneas. Para isso a internet é imbatível. Mas há quem queira, e necessite, entender o mundo. Para esse público deve existir leitura reflexiva, a grande reportagem.
Antes os periódicos cumpriam muitas funções. Hoje não cumprem algumas delas. Não servem mais para contar o imediato. E as empresas jornalísticas precisam assimilar isso e se converter em marcas multiplataformas, com produtos adequados a cada uma delas.
Há um modelo a ser seguido? Nas experiências que acompanho, ninguém alcançou a perfeição e ninguém se equivocou totalmente. O perceptível é que os jornais estão lentos para entender que o papel é um suporte que permite trabalhar em algo que a internet e a rede social não fazem adequadamente: a seleção de notícias, jornalismo de alta qualidade narrativa e literária. É para isso que o público está disposto a pagar. Também na internet. A fortaleza do jornal não é dar notícia, refém do factual. É se adiantar e investir em análise, interpretação e se valer de sua credibilidade. Não é verdade que o público não goste de ler. Não lê o que não lhe interessa, o que não tem substância. Um bom texto, para um público que adquire a imprensa de qualidade, sempre vai ter interessados.
Para mim, o grande desafio do jornalismo é a formação dos jornalistas. Se você for a um médico e ele disser que não estuda há 25 anos, você se assusta. Mas há jornalistas que não estudam nada há 25 anos. O jornalismo não é só rotativa ou tecnologia: o valor dele se chama informação, talento, critério. Por isso é preciso investir em jornalistas com boa formação cultural, intelectual e humanística – pessoas que leiam literatura, sejam criativas e motivadas. E, além disso, que sejam bons gestores.
As competências são demasiadas? Talvez. Mas é o que nos pede um mundo cada vez mais complexo e desafiante.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 31/8/2015
Jornal, âncora da democracia
Não existe um único assunto relevante que não tenha nascido numa pauta do jornalismo de qualidade. Os temas das nossas conversas são, frequentemente, determinados pelo noticiário e pela opinião dos jornais. A imprensa é, de fato, o oxigênio da sociedade. As redes sociais reverberam, multiplicam, agitam. Mas o pontapé inicial é sempre das empresas de conteúdo independentes. Sem elas a democracia não funciona.
O jornalismo não é antinada. Mas também não é neutro. É um espaço de contraponto. Seu compromisso não está vinculado aos ventos passageiros da política e dos partidarismos. Sua agenda é, ou deveria ser, determinada por valores perenes: liberdade, dignidade humana, respeito às minorias, promoção da livre-iniciativa, abertura ao contraditório. Por isso os jornais são fustigados pelos que desenham projetos autoritários de poder. O jornalismo sustenta a democracia não com engajamentos espúrios, mas com a força informativa da reportagem e com o farol de uma opinião firme, mas equilibrada e magnânima. A reportagem é, sem dúvida, o coração da mídia.
As redes sociais e o jornalismo cidadão têm contribuído de forma singular para o processo comunicativo e propiciado novas formas de participação, de construção da esfera pública, de mobilização do cidadão. Suscitam debates, geram polêmicas, algumas com forte radicalização, exercem pressão. Mas as notícias que realmente importam, isto é, aquelas que são capazes de alterar os rumos de um país, são fruto não de boatos ou meias-verdades disseminadas de forma irresponsável ou ingênua, mas resultam de um trabalho investigativo feito dentro de rígidos padrões de qualidade, algo que está na essência dos bons jornais.
A confiança da população na qualidade ética dos seus jornais tem sido um inestimável apoio para o desenvolvimento de um verdadeiro jornalismo de buldogues. O combate à corrupção e o enquadramento de históricos caciques da política nacional, alguns sofrendo o ostracismo do poder e outros no ocaso do seu exercício, só são possíveis graças à força do binômio que sustenta a democracia: imprensa livre e opinião pública informada.
Poucas coisas podem ter o mesmo impacto que o jornal tem sobre os funcionários públicos corruptos, sobre os políticos que se ligam ao crime, que abusam do seu poder, que traem os valores e os princípios democráticos. Os jornais, de fato, determinam a agenda pública e fortalecem a democracia. Políticos e governantes com desvios de conduta odeiam os jornais. Mas estes são, de longe, os grandes parceiros da sociedade, a âncora da democracia.
Navega-se freneticamente no espaço virtual. Uma enxurrada de estímulos dispersa a inteligência. Fica-se refém da superficialidade e do vazio. Perde-se contexto e sensibilidade crítica. A fragmentação dos conteúdos pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos, aparentemente, de ninguém. Somos os editores do nosso diário personalizado. Será?
Não creio, sinceramente. Penso que existe uma crescente demanda de jornalismo puro, de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica e ética. Há uma nostalgia de reportagem. É preciso recuperar, num contexto muito mais transparente e interativo, as competências e o fascínio do jornalismo de sempre.
Jornalismo sem brilho e sem alma é uma doença que pode contaminar as redações. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens não têm o cheiro do asfalto. As empresas precisam repensar os seus modelos e investir poderosamente no coração. É preciso dar novo vigor à reportagem e ao conteúdo bem editado, sério, preciso, ético.
É preciso contar boas histórias. E apurar com verdadeiro empenho de isenção. A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade.
O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: a repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declararem o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.
Frequentemente, também se sucumbe ao politicamente correto. Certas matérias, prisioneiras de chavões inconsistentes que há muito deveriam ter sido banidos das redações, mostram o flagrante descompasso entre essas interpretações e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a credibilidade, verdadeiro capital de um veículo de comunicação, se esvai pelo ralo dos preconceitos.
A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta de pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: a falta de planejamento e a obsessão de editores com o fechamento.
Quando editores não formam os seus repórteres, quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline, quando as pautas não nascem da vida real, mas de pauteiros anestesiados pelo clima rarefeito das redações, é preciso ter a coragem de repensar todos os processos.
A fortaleza do jornal não é dar notícia, é se adiantar e investir em análise, interpretação e se valer de sua credibilidade. Não é verdade que o público não goste de ler. Não lê o que não lhe interessa, o que não tem substância. Um bom texto, para um público que adquire a imprensa de qualidade, sempre vai ter interessados.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 25/5/2015
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